O finado é um ser humano muito sozinho. Passa o ano inteiro trancado naquela cova escura, sem ar, sem ninguém a quem recorrer para diminuir a sua solidão, quando muito tem a companhia de outros defuntos igualmente solitários, e somente uma vez a cada 365 dias recebe a visita de parentes e amigos. É no dia de finados, um dia como esse de hoje, que os vivos se lembram dos mortos, vão ao cemitério, acendem velas, botam flores, choram alguns minutos, depois ficam ali, impacientes, doidos para acabar a visita e voltarem ao aconchego dos bares, para curar o que chamam de mágoas num copo de cerveja.
Aí o defunto retorna à sua solidão, ao seu quarto escuro, à sua cova estreita e quente, aos vermes que lhe comem as entranhas, ao descanso incômodo e eterno do além.
Até parece que os vivos jamais morrerão. Pelo comportamento deles, julgam-se eternos. Tolos. Amanhã, todo dia, a cada instante, um sai da fila dos vivos para permitir um acréscimo na longa fila dos mortos. E então o que chegou ao hotel dos defuntos vai ver o que é bom pra tosse, vai beber do mesmo remédio, experimentar a mesma solidão, o mesmo quarto estreito, a mesma cova escura e quente.
Deve ser por isso que os defuntos de posses optam pela cremação. Sentem o torar do fogo, mas em poucos minutos viram cinzas e vão enfeitar vales, rios, mares e açudes, transformando-se em pó sem o inconveniente de virarem comida de lombrigas, de ratos, de bichos que habitam o submundo da terra. Esse tal de crematório deveria ser comprado pelo SUS e disponibilizado a todo mundo. Acabaria a superlotação dos cemitérios, possibilitaria ao defunto um jeito mais cômodo de enfrentar o pós morte e dava um fim à essa feira de flores e velas que enche o saco de quem chega aos cemitérios, no dia de finados, para visitar algum familiar defunto. Só haveria uma ruindade nisso tudo: nós não comeríamos mais aqueles jambos lindos que os moços do distrito mecânico colhem no cemitério e nos vendem à cada manhã de safra.
Nesse dia de finados, claro que constato o quanto anda desfalcado o meu time de vivos. Aqui já não mora mais o velho Miguel Lucena, o pai mais paizão que existiu na terra; também se foi dona Emília, minha mãe que não esqueço e que muita falta me faz; não tenho mais os manos Zezão, Galego e Carlinhos, além de amigos, incontáveis amigos, cujos nomes não declino para que algum, esquecido na relação dos citados, não fique com mágoa lá na cova estreita do seu cemitério. A todos, tributo a minha saudade que não morre, a minha lembrança sempre viva e o meu até logo, pois sei, com todas as letras, que qualquer dia desses vou ser vizinho deles na solidão dos que morrem.
COM O BLOG DE TIÃO LUCENA
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